quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Uma pergunta sobre a rádio de palavra

Com o advento do RCP (formato iniciado em Janeiro de 2007) entrou, definitivamente, no léxico radialista nacional a “rádio de palavra”, expressão derivada do inglês talk radio e apresentada, entre nós, como uma alternativa à rádio de notícias (news radio). O conceito foi definido pelo Director de Informação do RCP, Artur Cassiano, na Gala do 1º aniversário da estação, como uma forma específica de apresentar a actualidade, por contraponto a uma atitude inovadora de apresentar as notícias, papel que fora desempenhado pela TSF, rádio a que o próprio Artur Cassiano estivera ligado desde o início, faz agora vinte anos.

E o que caracteriza, então, esta forma distinta de apresentar a actualidade? Fundamentalmente, a participação de múltiplos convidados (mesmo que não se tenham confirmado as 20 personalidades todas as manhãs em estúdio, como prometera o Director da estação Luís Osório) com o intuito de pontuar, analisar e divulgar os aspectos que vão fazendo a história dos dias.

Chegado a este ponto, é altura de colocar a pergunta que me suscita dúvidas bastantes para problematizar a estruturação deste formato radiofónico.

No actual panorama mediático, em que o entretenimento tende a moldar a informação, em que os interesses comerciais se entrelaçam com critérios editoriais, em que as fontes profissionais dispõem de recursos humanos e técnicos que suplantam os próprios media, quem, em última instância, determina maioritariamente o quem e o quando no caudal de personalidades convidadas a participar numa rádio de palavra?

Numa primeira categoria, poderemos dizer que a participação dos ouvintes, seja em debates sobre assuntos públicos ou em espaços mais confessionais ou mais exibicionistas, é sempre, e em primeira instância, determinada pela estação, uma vez que a entrada em antena pressupõe uma inscrição prévia. No entanto, a experiência proporcionada pela audição de muitas horas destas emissões evidencia que não parece ser aplicado nem sequer um critério de participação que evite repetições, tal é o número dos mesmos ouvintes que é possível ouvir, recorrentemente, em antena. Resta saber se tal se deve à existência de grupos organizados que impedem a variabilidade de participações ou se resulta, pura e simplesmente, da escassez do auditório.

Numa segunda categoria, relativa às personalidades convidadas a participar na emissão, a pretexto deste ou daquele motivo – excluindo os comentadores habituais, esses, a priori, escolhidos pela estação, se bem que dentro dos condicionalismos do actual panorama mediático – acumulam-se no meu espírito uma série de interrogações, que passo a enunciar.

De entre todas as personalidades convidadas, qual a percentagem em que a iniciativa do convite partiu da estação, tendo em vista os seus próprios critérios? E quando é que se acedeu às propostas e insinuações de entidades externas, como agências de comunicação, assessorias, etc ? Aliàs, a mesma questão se pode pôr relativamente às notícias produzidas a partir das propostas das fontes profissionais. Estas iniciativas são, de um modo geral, aceites ou tendem a ser, maioritariamente, rejeitadas? Quanta conversa sobre livros, filmes, exposições ou peças de teatro configura simples acções de promoção, subestimando os critérios jornalísticos? Quantas instituições ou personalidades públicas ou privadas acedem à emissão apenas porque quem trata da sua imagem quis “vendê-las” e não porque quem detém a antena tivesse ido às compras?

Já sabemos que o mercado é um ponto de encontro onde se satisfazem compradores e e vendedores. Porém, haverá que salvaguardar especificidades inerentes à responsabilidade social que envolve o mercado mediático, pelo que os media não podem abdicar de ter uma palavra decisiva em cumprir a sua função de escolha, a sua matriz editorial.

Todas as questões acima expostas põem-se relativamente a qualquer formato radiofónico. Porém, colocam-se ainda com maior acuidade numa rádio de palavra na qual alguns dos espaços de debate, de entrevista e de participação dos ouvintes nem sequer são conduzidos por jornalistas.

Assim sendo, só uma rádio editorialmente blindada às insinuações do Estado e do Mercado, com recursos humanos qualificados e meios materiais consistentes, estará em condições de ser ela própria a definir toda a sua carteira de convidados, bem como a sua própria agenda mediática.

Caso contrário, a rádio de palavra corre o risco de transformar-se numa rádio de palavreado, sem qualquer consistência, ou, no pior dos casos, numa feira de vaidades de um circo mediático onde aparecem sucessivamente palhaços ricos e pobres, malabaristas, contorcionistas, animais mais ou menos selvagens e domadores.

4 comentários:

José Brito,sj disse...

Chego aqui via blogouve-se.
Este texto ajuda-me a reflectir sobre um tema importante...
o contraponto a todas estas questöes e tentar também compreender a importância da palavra, da opiniao na assimilaçao da informaçao.
Como, leitor, ouvinte, espectador, às vezes fico com a sensaçao que a opiniao e mais fértil que a simples informçao. Digo isto ma medida em que um texto de opiniao me ajuda a fazer uma integraçao mais profunda do seus conteúdos quee algumas notícias. Ajuda a rrumar ideias, a elaborar sínteses mesmo que isso se passa na medida em que dele me distancio.
Por tudo isto penso que tendo todos os cuidados de que fala, salvaguradndo a diferença entre opiniao e notícia, que um modelo "rádio palavra" pode ter hoje num mundo com muita informaçao disponível, um papel especialmente relevante. Que lhe parece?
obrigado pela atençao

Vítor Soares disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Vítor Soares disse...

Caro zé maria brito,

Agradeço o seu comentário na medida em que as interrogações que coloca me permitem explicitar o âmbito da reflexão académica que exercitei com este post.

Em primeiro lugar, convém desfazer um pequeno equívoco. É óbvio que o conceito de “rádio de palavra” engloba a também a informação. Não é só opinião, como parece querer dizer. É tudo aquilo que na terminologia anglo-saxónica se designa por “news-talk-information”. No entanto, o formato, consoante as emissoras, pode ter uma maior vertente de notícias, de informação, de conversa ou de opinião. Daí que se fale, por exemplo, em “news radio” ou em “talk radio”.

Por outro lado, não contesto que a opinião, o comentário e a análise ajudam a enquadrar as notícias e permitem uma visão mais completa da actualidade.

A questão fundamental que eu pretendi levantar não foi essa, mas sim reflectir sobre o facto de a “rádio de palavra”, e particularmente aquela que não é apenas uma rádio de notícias mas que tem igualmente muita opinião, ficar mais vulnerável perante a panóplia de interesses particulares que hoje em dia têm capacidade de se manifestar nos média.

Por definição, os meios de comunicação social devem privilegiar os interesses colectivos, de acordo com a matriz do seu respectivo estatuto editorial. Editar é escolher, daí o papel central que o “gatekeeper” – seja o repórter que decide às fontes a que deve recorrer até ao editor que opta por tratar este e não aquele assunto – tem nas teorias do jornalismo.

Ora, a questão que se põe, particularmente nos audiovisuais, com a subordinação do jornalismo ao espectáculo, da informação ao “entertainment”, e com a precaridade crescente dos jornalistas perante as fontes organizadas , é a necessidade absoluta de uma blindagem editorial consistente e de um corpo profissional competente.

Para que a notícia não dê lugar à promoção e para que a opinião democrática não se transforme em propaganda demagógica.

José Brito,sj disse...

Agradeço muito o seu esclarecimento.
ficarei atento a este blog.