segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

As três palavras-chave para a reinvenção da rádio

Muito se tem dito e repetido sobre a crise da rádio, o impasse em que se encontra actualmente o meio, face à transição para o digital. Neste quadro, passo a enumerar as três palavras-chave que, do meu ponto de vista, traduzem os conceitos fundamentais que devem ser explorados para que a rádio possa sobreviver:

A estética

Antes de mais, a rádio é som, seja nas suas componentes de palavra, de música, ou de criação de ambientes sonoros que podem ir do silêncio absoluto até ao incómodo ruído. Perante esta vasta paleta de tons e sons é óbvia a importância que deve ser atribuída à sonoplastia e à sonorização. O pouco cuidado formal, fruto do desinvestimento que o meio rádio tem vindo a sofrer nos últimos anos, ajudou a que se chegasse a um ponto em que quase deixaram de ser questionadas a pertinência do tratamento sonoro, as características elocutórias, a concepção plástica do material emitido. Assim sendo, foi ficando por caminhos ínvios o idealismo que me levava a declarar, no Manifesto Cacimbo 73, com a impetuosidade e a ingenuidade própria dos 20 anos, que a arte radiofónica, definitivamente, era um facto. Desde então para cá, o conceito da rádio entendida como um objecto artístico foi regredindo sendo, hoje em dia, praticamente residual. O desenvolvimento da indústria não se compadeceu com as veleidades estéticas e o que acabou por imperar foi o fast-food radiofónico. Todavia, a mais recente evolução tecnológica, aliada à exigência decorrente da segmentação dos públicos, abriu uma janela de oportunidade para a revalorização da estética radiofónica se esta souber constituir-se numa mais-valia para a indústria.

A emoção

O som, antes de ser psíquico, é físico. Daqui decorre, imediatamente, o princípio de que nunca deve ser escamoteada a repercussão fisiológica da matéria sonora. Por outro lado, o ouvido é um sentido primordial. Antes de desenvolver qualquer outro sentido, mesmo antes de ver o que quer que seja, já o feto ouve correr os fluxos sanguíneos das artérias e das veias na barriga da mãe. Assim sendo, a envolvência auditiva começa a manifestar-se ainda antes do nascimento e acaba por desencadear processos cognitivos particulares que nunca irão deixar a razão, própria do ser humano, anular completamente a emoção associada aos sons. É esta sensibilidade e a hiper-importância específica do mundo do ouvido que o meio rádio não pode descurar. De resto, a inter-dependência entre a razão e a emoção, que as neurociências tão bem têm documentado nos últimos anos, encontra na produção radiofónica um vasto campo de análise. Uma voz imaculadamente límpida pode não resultar significativamente se não transmitir algum tipo de empolgamento. Assim como um registo tecnicamente perfeito pode perder-se no éter se não conseguir fazer passar um qualquer sentimento. É, justamente, este lado afectivo que produz a magia do som e é da amálgama com os factores racionais que resulta uma complexidade do fenómeno auditivo que só o contributo da emoção consegue explicar plenamente.

A surpresa

Finalmente, a surpresa. A rádio tem de surpreender. Não é por acaso que uma emissão limite como a encenação que Orson Welles fez de "A guerra dos mundos" ficou para sempre como um paradigma da rádio. Pelo contrário, a previsibilidade é o primeiro passo para que o ouvinte mude de estação ou se desinteresse do que está a ouvir mesmo se, porventura, não desligar o receptor. E não basta a transmissão da actualidade em directo para que o efeito surpresa funcione. Aliàs, já é tempo de acabar de vez com o mito rangeliano da "rádio em directo", tal é o uso e abuso que se tem feito do conceito. Para além de já quase nunca surpreender (são as conferências de imprensa na hora dos telejornais, são as declarações previsíveis, são as entrevistas de circunstância), quando se justifica, e na falta de grandes repórteres, o directo em rádio (e já agora também em televisão), tende a ser formalmente pobre e a fazer apelo às emoções mais primárias, quando não é, pura e simplesmente, idiota. Porém, se conjugarmos numa produção formalmente apurada, emoções dignamente representadas com motivações de ordem racional, fazendo uso dos processos interactivos facilitados pelo desenvolvimento tecnológico, poderemos verificar como o espaço público da rádio no século XXI ainda pode ser surpreendente.

Concluindo, o futuro da rádio não estará em causa se a estética for apurada, se a emoção não for completamente submetida à supremacia da razão e se não for descurada a capacidade de surpreender. Já sabemos que as playlists limitam a surpresa nas rádios musicais, mas um programa informático mais aleatório, conjugado com uma apresentação formalmente inovadora e estabelecendo uma forte ligação emocional, pode ultrapassar o handicap e fazer a rádio ombrear com a opção por leitores de mp3. E o mesmo se passará com qualquer outro formato. Do relato das actividades desportivas às performances (as artes performativas podem ainda vir a ter um interessante ciclo de vida na rádio), da entrevista à reportagem. E nem sequer a rádio de palavra (tida como insubstituível) resistirá ao digital se se limitar apenas a ser instrumental, racional e previsível, isto é, um bocejo. Se quiser vingar, qualquer formato, seja ele qual for, terá de ser esteticamente apelativo, emocionalmente forte sem deixar de ser digno, nunca perdendo de vista a capacidade de produzir algum efeito de surpresa junto de quem ouve.